O Ifood é líder no mercado brasileiro de delivery de refeições, detendo posição dominante na intermediação entre restaurantes e consumidores. Em seu modelo de negócio, os valores pagos pelos clientes são repassados aos comerciantes 30 dias após a compra A empresa oferece a possibilidade de antecipação semanal desses repasses mediante pagamento de taxa. Contudo, desde 2024 a empresa diminuiu o valor da referida taxa e condicionou a possibilidade de opção do repasse semanal à abertura de conta digital controlada pelo próprio Ifood.
Essa atuação desperta sérias preocupações, pois o iFood pode estar incorrendo em conduta anticoncorrencial, nos termos da Lei nº 12.529/2011, ao combinar elementos de venda casada, empacotamento e autoalavancagem. A prática de condicionar o acesso a um benefício relevante (antecipação de valores) à adesão a um serviço próprio (conta digital) pode ser classificada, sob a ótica do direito antitruste, como venda casada.
Como leciona Ana Frazão, trata-se de uma forma de restrição vertical em que o fornecimento de um produto ou serviço é condicionado à aquisição de outro, o que restringe o acesso de concorrentes ao mercado vinculado. No caso, a conta digital oferecida pelo iFood assume a posição de produto vinculado (tied product), cuja adoção passa a ser praticamente compulsória para aqueles que desejam usufruir de condições comerciais mais vantajosas. Ainda que não se trate de uma imposição formal, a natureza do incentivo econômico pode funcionar como uma coerção indireta, moldando o comportamento dos restaurantes de modo a reduzir a concorrência em serviços financeiros e reforçar a posição do iFood em múltiplas camadas do mercado.
A conduta adquire contornos ainda mais delicados quando analisada à luz do precedente do CADE no caso Itaú/Redecard (PA 08700.002066/2019-77). O CADE concluiu que o oferecimento de antecipação gratuita de recebíveis, condicionado ao domicílio bancário no Itaú, constituía empacotamento misto (mixed bundling). O voto do relator e do vogal reconheceram que, mesmo na ausência de preço predatório, a prática poderia elevar os custos dos concorrentes e criar uma vantagem inimitável em razão da integração vertical entre os mercados de adquirência e serviços bancários. Tal entendimento pode ser aplicável ao caso do iFood, cuja posição dominante é usada como alavanca para promover seu serviço de pagamento.
Lina Khan, em seu artigo “Amazon’s Antitrust Paradox”, demonstra como plataformas digitais integradas verticalmente podem usar sua condição de intermediárias essenciais para promover seus próprios produtos ou serviços em mercados adjacentes. A autoalavancagem, ocorre quando a plataforma se vale do controle sobre fluxos de transação, dados e visibilidade para favorecer unidades de negócio sob seu controle. No caso do iFood, a exigência de abertura de conta digital como contrapartida para acesso à liquidez financeira é um claro exemplo desse tipo de conduta, que compromete a neutralidade da plataforma e pode ter efeitos excludentes sobre rivais bancários e financeiros.
Sob a ótica do estruturalismo econômico, a conduta também revela traços preocupantes. A elevada concentração de mercado nas mãos do iFood implica um ambiente com alta probabilidade de coordenação tácita, bloqueio de entrantes e assimetria de barganha com parceiros comerciais. Como pontuado por Khan, estruturas de mercado concentradas não apenas reduzem a competição, como também elevam os riscos de captura institucional, com repercussões negativas para consumidores, fornecedores e para a própria dinâmica de inovação no mercado.
A conduta do iFood potencialmente viola a Lei nº 12.529/2011, que considera infrações à ordem econômica dificultar o acesso de concorrentes ao mercado, impor condições comerciais abusivas e subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro. A jurisprudência mais recente do CADE também tem relativizado o requisito de coerção explícita para a configuração de venda casada, enfatizando os efeitos econômicos concretos da prática. Descontos, incentivos financeiros e vantagens competitivas estruturais têm sido analisados como meios indiretos de restrição da concorrência.
Em suma, a conduta do iFood tem o potencial de reunir os elementos clássicos de uma prática anticoncorrencial complexa: poder de mercado, integração vertical, vantagem inimitável e conduta de exclusão. A imposição indireta da conta digital, ao condicionar o acesso a um serviço essencial de liquidez, cria uma estrutura de incentivo que limita a competição, não apenas entre plataformas de delivery, mas também entre instituições financeiras e de pagamento. Trata-se, portanto, de uma estratégia que merece cuidadoso escrutínio pelas autoridades concorrenciais, sob pena de cristalização de um modelo de negócio que compromete a competição, a eficiência e a liberdade de escolha dos agentes econômicos dependentes da plataforma.
